O berimbau é um instrumento que se destaca como o símbolo da capoeira, marcando seu ritmo, alma e caráter único. Feito com materiais simples como madeira, arame e uma cabaça, o berimbau carrega uma sonoridade distinta que guia o movimento e a energia de todos os participantes de uma roda de capoeira. É ele quem dita a velocidade, a intensidade e o tom do jogo, tornando-se essencial para a musicalidade e o ritmo dessa expressão cultural afro-brasileira.
Além de ser o “regente” da roda, o berimbau possui um papel histórico fundamental que vai muito além do aspecto musical. Neste artigo, vamos explorar as origens do berimbau, suas funções dentro e fora da capoeira, e seu papel como instrumento de resistência e conexão ancestral. Analisaremos como ele se transformou em um símbolo cultural, não apenas da capoeira, mas também da identidade afro-brasileira, permanecendo um elo entre as tradições africanas e a prática contemporânea.
As Origens do Berimbau
O berimbau tem raízes profundas nas tradições africanas, onde instrumentos de corda semelhantes já eram utilizados para acompanhar danças, rituais e práticas de luta. É amplamente aceito que ele tenha surgido em regiões da África Central, particularmente em Angola, onde existiam instrumentos similares, como o mbulumbumba, uma espécie de arco musical que também utilizava uma cabaça como caixa de ressonância. Esses instrumentos ancestrais desempenhavam papéis importantes nas cerimônias e eram usados para marcar o ritmo de movimentos corporais.
Quando africanos escravizados foram trazidos ao Brasil, eles trouxeram consigo não apenas suas tradições e crenças, mas também suas práticas musicais. O berimbau, inicialmente utilizado em atividades culturais e religiosas, foi adaptado e incorporado à capoeira, tornando-se um elemento essencial nessa prática. Ao longo dos anos, o berimbau passou por transformações, adequando-se aos materiais disponíveis no Brasil e às necessidades dos capoeiristas, que o utilizavam para camuflar a prática da luta sob a forma de dança.
A introdução do berimbau à capoeira não apenas enriqueceu a prática com musicalidade, mas também conferiu um forte simbolismo. Ele se tornou um marcador de identidade cultural e resistência, funcionando como um elo com as raízes africanas. Com seu som inconfundível, o berimbau passou a definir o ritmo e a intensidade da roda de capoeira, firmando-se como o coração dessa manifestação cultural afro-brasileira.
Estrutura e Funcionamento do Berimbau
O berimbau é um instrumento simples, mas de construção única e de grande importância para a capoeira. Ele é composto por cinco elementos principais:
- Verga: é uma vara flexível, geralmente feita de madeira de biriba, que forma o arco do instrumento. É nela que o arame é tensionado, criando a estrutura básica do berimbau.
- Arame: um fio de metal que antigamente era retirado de pneus e que, hoje, pode vir de outros materiais. O arame é esticado ao longo da verga e é responsável pela vibração que produz o som do instrumento.
- Cabaça: uma espécie de cabaça oca e seca que serve como caixa de ressonância. Ela é amarrada à verga, de forma que o capoeirista pode posicioná-la contra o corpo para variar a sonoridade do berimbau.
- Dobráo: uma moeda ou uma pedra lisa usada para pressionar o arame e variar as notas. A técnica para pressionar o dobrão no arame permite ao tocador criar diferentes sons e ritmos.
- Baqueta: uma vareta fina, usada para percutir o arame e produzir os sons. O toque da baqueta, em conjunto com a pressão do dobrão e o movimento da cabaça, permite uma variação rítmica e melódica que orienta a roda de capoeira.
O som característico do berimbau é obtido através de uma técnica singular, que combina o toque da baqueta no arame e a movimentação da cabaça em relação ao corpo do tocador. O berimbau pode produzir três sons principais: o “aberto”, o “fechado” e o “chiado”, que, combinados, formam os toques específicos, ou ritmos, que regulam a intensidade e o estilo da roda. Esses toques – como o Angola, o São Bento Grande e o Iúna – determinam o ritmo e a energia da capoeira, influenciando a interação dos capoeiristas.
Na roda de capoeira, o toque do berimbau é essencial, pois ele direciona os movimentos dos jogadores e define a cadência da roda, transmitindo mensagens sutis sobre o ritmo e o estilo de jogo que se espera. Assim, o berimbau atua como o líder invisível da roda, canalizando a energia dos capoeiristas e mantendo viva a tradição e o espírito dessa arte ancestral.
Os Toques do Berimbau e seus Significados
Os toques do berimbau são ritmos específicos que orientam a dinâmica da roda de capoeira, dando sinais claros sobre o estilo e a intensidade do jogo a ser praticado. Cada toque possui uma cadência distinta, representando tradições, rituais e intenções de jogo, e comunicando a atmosfera desejada aos capoeiristas. Entre os toques mais conhecidos estão:
- Angola: Um dos toques mais tradicionais, o toque de Angola é executado em um ritmo mais lento e profundo. Ele é associado ao estilo de Capoeira Angola, caracterizado por movimentos baixos e estratégicos, onde os capoeiristas mantêm contato próximo ao chão e jogam de forma cuidadosa e observadora. Esse toque evoca ancestralidade e respeito às tradições da capoeira.
- São Bento Grande: Esse toque é mais acelerado e intenso, sendo comumente utilizado na Capoeira Regional, um estilo que privilegia movimentos rápidos e acrobáticos. O São Bento Grande impulsiona um jogo mais agressivo e dinâmico, incentivando a agilidade e a reação rápida dos jogadores, trazendo um clima de desafio e energia para a roda.
- São Bento Pequeno: Um toque intermediário, o São Bento Pequeno é utilizado para um jogo mais controlado e estratégico, sem a lentidão de Angola nem a intensidade total do São Bento Grande. Esse toque incentiva um jogo de troca e observação, em que os capoeiristas interagem de maneira fluida, mas com uma postura cautelosa.
- Iúna: É um toque respeitado e tradicionalmente reservado para mestres e jogadores mais experientes, convidando a uma demonstração de habilidades e movimentos complexos sem interação direta de combate. Esse toque representa mais um momento de exibição e reverência ao controle e à técnica, promovendo uma espécie de “dança” em que cada capoeirista demonstra sua destreza.
Cada toque do berimbau influencia profundamente o jogo, alterando o comportamento e o estilo dos capoeiristas. Os toques funcionam como uma linguagem rítmica que comunica o tipo de movimento e a energia esperada na roda, sendo compreendidos instintivamente por aqueles que praticam a arte. A resposta dos jogadores aos toques demonstra a conexão entre música, corpo e história, e permite que o berimbau conduza a roda, tornando-se uma poderosa forma de expressão e comunicação entre os capoeiristas.
O Berimbau como Elemento de Liderança na Roda de Capoeira
Na roda de capoeira, o berimbau desempenha um papel fundamental como o “comandante” que define o ritmo, o tom e o estilo do jogo. Sua função vai além de um simples instrumento musical: ele é o elo entre os capoeiristas e o espírito da roda, guiando cada movimento e estabelecendo o tipo de jogo a ser jogado. Os capoeiristas seguem atentamente o toque do berimbau, pois é ele que dita se a energia será mais lenta e estratégica, como na Capoeira Angola, ou acelerada e vigorosa, como na Capoeira Regional.
O tocador de berimbau, geralmente o mestre ou capoeirista mais experiente, é uma figura de grande respeito e autoridade na roda. Esse líder musical não só rege o ritmo, mas também observa o jogo e, por meio de variações sutis nos toques, orienta a intensidade e a direção das interações entre os capoeiristas. Um ajuste no toque, por exemplo, pode indicar aos jogadores a necessidade de desacelerar, refletir, ou mudar de postura. Em muitos casos, o tocador usa o toque para advertir ou alertar capoeiristas que se excedem ou que precisam adotar uma postura mais cuidadosa.
O berimbau, portanto, orienta os capoeiristas em cada movimento, convidando-os a responder musicalmente e corporalmente à energia da roda. Ele estabelece a harmonia entre os jogadores e mantém a tradição da capoeira como uma prática onde todos respeitam o fluxo ditado pelo som. Além disso, o berimbau simboliza a sabedoria ancestral, e, ao conduzir a roda, reitera a capoeira como um ritual de respeito mútuo e celebração da cultura afro-brasileira.
O Berimbau e a Resistência Cultural Afro-Brasileira
O berimbau é muito mais do que um simples instrumento musical; ele é um símbolo de resistência e conexão profunda com as raízes africanas, representando a história de luta e resiliência dos afro-brasileiros. Trazido ao Brasil pelos africanos escravizados, o berimbau carrega em suas cordas e sons a força de um povo que resistiu à opressão e que, por meio da capoeira, preservou suas tradições culturais e espirituais. Em uma sociedade onde as práticas afro-brasileiras eram frequentemente marginalizadas, o som do berimbau ecoava como um ato de afirmação e resistência cultural.
Durante os períodos de repressão à capoeira, principalmente no século XIX, quando esta era criminalizada, o berimbau também enfrentou ameaças. Ainda assim, ele sobreviveu, mantido vivo por gerações de capoeiristas que encontravam formas de praticar e proteger a tradição. Na roda de capoeira, o berimbau se tornava um símbolo de união e força, desafiando as tentativas de apagar a cultura africana no Brasil. Seu som representava a continuidade de uma herança que não poderia ser extinta.
Com o tempo, o berimbau ganhou aceitação em outras manifestações culturais brasileiras, como no samba de roda, e passou a ser reconhecido como parte do patrimônio cultural do país. Hoje, o berimbau não só conecta os capoeiristas com suas origens africanas, mas também é celebrado como um ícone da identidade afro-brasileira. Ele se mantém como um testemunho sonoro da resistência e como uma ponte viva entre o passado ancestral e a expressão cultural contemporânea, consolidando a capoeira como um legado de liberdade e identidade.
O Berimbau na Capoeira Contemporânea
Na capoeira moderna, o berimbau mantém sua influência como o “coração” da roda, estabelecendo o ritmo e o estilo do jogo e garantindo a continuidade da tradição. Seja em academias ou rodas ao ar livre, o som do berimbau é essencial para criar a atmosfera e guiar a interação entre os capoeiristas. Mesmo com a capoeira ganhando novas formas e influências, o berimbau continua a ser uma peça central, representando tanto a história quanto o espírito da prática.
Hoje em dia, mestres e praticantes se dedicam a preservar os toques tradicionais, como Angola, São Bento Grande e Iúna, que carregam significados profundos e estilos próprios. Cada toque remete a um aspecto específico da capoeira, seja para jogos mais lentos e ritualísticos ou mais rápidos e acrobáticos. Essa preservação é essencial para manter viva a autenticidade do berimbau, transmitindo os ensinamentos que foram passados de geração em geração.
Com a globalização da capoeira, o berimbau também conquistou novos espaços ao redor do mundo. Ele é valorizado e respeitado por praticantes e simpatizantes, que veem nele uma ligação com a cultura afro-brasileira. À medida que a capoeira se espalha por diferentes países, o berimbau se torna um símbolo de união, que transcende fronteiras e promove a diversidade cultural. Seu impacto vai além do instrumento: ele representa a expansão da capoeira como uma arte global e fortalece a conexão com suas raízes ancestrais, sendo um embaixador cultural que continua a inspirar praticantes em cada canto do planeta.
Conclusão
O berimbau é mais que um simples instrumento musical — ele é a verdadeira “alma” da capoeira, carregando em suas cordas e ritmos a história, a resistência e a ancestralidade afro-brasileira. Cada toque do berimbau remete à força e à resiliência dos que trouxeram essa prática ao Brasil, preservando sua cultura e crenças em meio a adversidades. A liderança do berimbau na roda de capoeira, guiando os movimentos e a energia dos capoeiristas, reflete seu papel essencial como guardião das tradições.
Preservar o berimbau é honrar o legado afro-brasileiro e as raízes culturais da capoeira, que continuam a inspirar e a unir pessoas no Brasil e ao redor do mundo. Esse instrumento, que resistiu a séculos de repressão e marginalização, merece ser valorizado como um patrimônio cultural vivo e celebrado como símbolo da história e da luta por liberdade.
Que possamos, portanto, reconhecer e valorizar o berimbau em sua totalidade, respeitando sua importância para a capoeira e para a identidade afro-brasileira. Ele nos convida a lembrar de nosso passado, a abraçar nossas tradições e a celebrar a riqueza cultural da capoeira — uma herança que atravessa gerações e nos conecta a uma ancestralidade de resistência e orgulho.